domingo, 16 de maio de 2010

Desvalorização feminina na Memória (II)

Testemunhos


Vivemos uma era em que se deram importantes mudanças na condição feminina. Todavia um estudo das Nações Unidas datado de 1995 refere que 70% dos pobres no mundo são mulheres e que:

“(…) apesar de duas décadas de avanços na educação e saúde da população feminina em todo o mundo, centenas de milhões de mulheres, quer em nações ricas quer em nações pobres, ainda são economicamente subvalorizadas, é-lhes negado o acesso a um efectivo poder político e são mantidas na submissão por gritantes desigualdades à face da lei.”
[1]

“Mãe e esposa: filhos, cozinha e igreja era o ideal de vida feminina no começo do século. Existiam as senhoras e existiam as mulheres; era essa a grande divisão moral de um género feminino que não teve pernas visíveis até bem entrados os anos vinte [da centúria de 1900], escondendo o corpo em férreos espartilhos e a vida no lar. A casa era o seu território e todo o seu mundo, a gaiola para rir, chorar ou desesperar. O marido, imaginado como príncipe encantado, era a razão básica desta existência feminina, o sentido que tudo decidia: um deus humano. Sem marido, uma mulher burguesa era um fracasso; uma mulher seca, uma puta ou uma solteirona, mas ambas imagens de um grande fracasso. A mulher, fosse o que fosse, era uma máquina reprodutora. As mulheres burguesas eram criadas sem iniciativa, atadas a um destino parasitário e sem outro horizonte além do delírio da fantasia servido por folhetins, romances e sonhos impossíveis.”
[2]

“As mulheres tornaram-se perigosas quando começaram a ler e a escrever.”[3]

“(…) [As mulheres] descobriram que a História tinha sido masculina e que os homens a tinham feito à sua medida, sem nenhum lugar para elas. E começaram a pensar no porquê de tal disparate.”[4]

A gravidez, a maternidade e a amamentação sempre constituíram territórios exclusivos da mulher. Como resposta, os homens criaram através da História e permeando todas as culturas, uma variedade de territórios exclusivos para si próprios: a guerra, a política, o clero, os negócios e assim por diante. Desvalorizaram as mulheres e classificaram-nas como inferiores por duas razões básicas: primeiro por recearem serem eles biologicamente inferiores; segundo porque eles próprios foram desvalorizados pelo desenvolvimento da agricultura.

Contudo, apesar das resistências encontradas, algumas transformações ocorreram ao longo do séc. XX na condição feminina: o parto deixou de ser uma ameaça incontornável à vida da mulher; os contraceptivos garantem uma ideia de responsabilidade perante a reprodução; o sexo passou de castigo a prazer; o trabalho veio possibilitar a independência feminina; a mulher tem cada vez mais acesso à educação e à cultura; os electrodomésticos vieram aliviar o trabalho do lar; a mulher obteve o direito de voto.

Porém, as mulheres não governam, as relações sociais empurram os homens para uma situação em que, fazendo muito pouco, controlam a vida das suas famílias, a economia e a política. “Em África as mulheres produzem mais de 75% da comida, cultivam os campos e fazem tudo o necessário para assegurar a sobrevivência e não se morrer de fome, mas... não decidem.”[5]

Os homens no poder não terão interesse em partilhar o dinheiro ou os lucros; de modo geral, as mulheres nos governos ocupam-se da saúde ou da educação.

“As pressões para que as mulheres sejam conformistas são enormes.”
[6]

“[Fui educada] para falar francês, pôr bem a mesa e sentar-me com as pernas juntas. Não fui à universidade, saí do colégio com a ideia de que me ia casar e ser mamã…”
[7]

“Existe diferença no sentido do poder entre mulher e homem. Eles, por vezes, têm mais o sentimento do poder pelo poder que é o objectivo por que desejam o poder. Pelo contrário, as mulheres concentram-se mais no objectivo, no que querem fazer, o que as leva a esquecerem-se do poder e perdem-no.”
[8]

“Ela [a sua mãe] foi o caso típico de mulher abandonada, sem ter havido divórcio, regressou a casa dos pais, mas nunca se colocou a hipótese de se manter a si mesma: dependia sempre de alguém. Vi-a sempre como vítima… por isso me esforcei em não dever nada a ninguém.”
[9]

“Naquele trabalho [de hospedeira] o cliente era um deus e nem sequer existiam palavras para exprimir o assédio sexual nem nada do estilo. (…) Sucedeu que o meu marido, que era estudante, precisou de uma cirurgia dental e o seguro da companhia [aérea] disse que não cobria os cônjuges dos empregados que eram mulheres; em contrapartida, cobria todos os familiares dos empregados homens.”
[10]

“Porque é que há tão poucas ministras? Porque é que o Fundo Monetário Internacional só tem dois directores? Gostaria de falar como Betty Friedan e pensar que existe um ‘complot’ contra a mulher, mas acontece muitas vezes que o pior inimigo da mulher é a própria mulher. Crescemos num mundo que não nos ensinou a valorizarmo-nos; temos uma falta de auto-estima brutal, uma espécie de sentido maternal em relação ao homem… passamos por alto coisas que depois nos obrigam a lavar pratos. Se as mães dos rapazes de dezoito anos fossem apenas mães e não se preocupassem com a gestão e o conforto, os rapazes aprenderiam a cozinhar e a lavar… Embora também me preocupe estar no ano 2000 e que as mulheres do Afeganistão não possam, não só realizar filmes, como ir ao cinema! Há muitas coisas, a educação não te ensina a valorizares-te, misturando com o pânico de que, se não te comportas como um homem, vais perder os valores que te tornam atraente como mulher…”
[11]

“Pensei sempre que as mulheres são mais lutadoras porque têm necessidade. Somos mais numerosas e somos diferentes dos homens (…). Hoje o feminismo não tem dúvidas sobre o direito à igualdade, mas diz que, por serem diferentes, as mulheres podem trazer outras coisas, como é olhar para a sociedade de outra maneira da que fazem os homens. Seguramente temos mais em conta o indivíduo, a pessoa, as relações, a colaboração e a conciliação. Temos umas relações diferentes com as crianças e uma ideia da sociedade menos rígida e com mais imaginação.”
[12]

“Quando as mulheres são ambiciosas, são sérias, procuram as coisas bem feitas até ao pormenor e, além disso, têm a convicção de que há coisas definitivamente importantes, como é o laço que as une à vida. Quando se faz política, isso nota-se; os homens são um clube que actua, em política, como tal. Pelo contrário, as mulheres sabem, também, que não se podem impor para não serem imediatamente acusadas de autoritarismo ou de histeria, pelo que procuram o equilíbrio e o pacto constantemente.”
[13]

As mulheres mandariam de forma diferente dos homens?
“Espero que não. É um disparate pensar que se podem mudar as características do poder que é, sobretudo, responsabilidade. E esta responsabilidade deve ser utilizada da melhor maneira possível, faça-se o que se fizer, administre-se uma empresa ou um país. É preciso conhecer as pessoas, ajudá-las a melhorar, fazer bem as coisas e, em tudo isso, tanto faz que se seja homem ou mulher. Talvez as mulheres possam emprestar uma certa sensibilidade… No meu caso, sei que, quando via que tinha de fazer algo, o fazia; se tinha de decidir, decidia, assim como quando decidimos ir embora, vamos. O trabalho tem as suas leis e normas para todos, seja-se o que se for.”[14]

[1] Cf. Barbara Crossette, “U.N. Documents Inequities for Women as World Forum Nears” in The New York Times, 18/08/1995. [Consult. 7 Jan 2009] Disponível em http://tinyurl.com/8pmeoj
[2] Margarita Rivière, op. cit., p. 17.
[3] Rita Süssmuth [ex-Presidente do Bundestag] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 189.
[4] Margarita Rivière, op. cit., p. 18.
[5] Graça Machel [activista dos direitos das crianças e das mulheres] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 202.
[6] Idem, p. 190.
[7] Rita Süssmuth apud Margarita Rivière, op. cit., p. 191.
[8] Idem
[9] Isabel Allende [escritora chilena] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 226.
[10] Patrícia Ireland [Presidente da Organização Nacional de Mulheres (NOW) nos Estados Unidos] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 242.
[11] Isabel Coixet [realizadora de cinema espanhola] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 207.
[12] Simone Weil [ex-ministra francesa e ex- Presidente do Parlamento Europeu] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 223.
[13] Idem.
[14] Katharine Graham [empresária e proprietária do Washington Post] apud Margarita Rivière, op. cit., p. 211.

sábado, 27 de março de 2010

Desvalorização feminina na Memória (I)

A Memória tem sido encarada exclusivamente do ponto de vista individual. Só com o renovado interesse pela História dos povos sem História, se começou a aperceber que a sua vertente colectiva tem particular relevância para o estudo das sociedades, pois embora seja o indivíduo que recorda, fá-lo enquanto parte de um grupo social e, por conseguinte, sujeito a todas as influências que actuam sobre esse grupo. É aliás a memória colectiva que permite a identificação de uma determinada sociedade como diferente das demais.[1]
Um componente fundamental dessa identificação é precisamente a linguagem, a qual reflecte a cultura dos povos, que não é mais que o produto da sua Memória.

A Língua
Quase todos nós utilizamos terminologia masculina para falar de ambos os sexos. O argumento mais comum é o de que, ao falar-se de ‘Homem’, se está a incluir tanto os homens como as mulheres, isto é, se está a falar do ser humano. Porém, não será tal proposição um engano? Não será antes o resultado directo do mito de que a procriação é um papel exclusivamente masculino e de que Deus é masculino?
[2] Tendo o Homem sido feito à imagem e semelhança de Deus – segundo nos diz a religião – isso significa que o homem é o ‘verdadeiro humano’, o modelo do que um ser humano deverá ser quando comparado com Deus. Extrapolando, pode então considerar-se que a mulher será uma aproximação imperfeita desse ideal, o que levará à utilização de termos masculinos de uma forma genérica. Um interessante exemplo deste modo de pensar é dado pelo total da entrada ‘mulher’ na 1.ª edição da Enciclopédia Britânica em 1771: “Mulher – A fêmea do homem. Ver Homo”.[3]
O subtil mas extremamente poderoso efeito da linguagem pode ser melhor percebido se houver uma inversão dos termos da equação: se o termo ‘Homem’ engloba obviamente a mulher, o que aconteceria se o termo ‘Mulher’ designasse também o homem? Seria um absurdo? O senso comum, isto é, o conjunto das opiniões geralmente aceites sobre qualquer questão pela maioria das pessoas, é deveras ilustrativo sobre como a linguagem é usada na desvalorização feminina.
Apelidar uma menina de ‘maria-rapaz’, conquanto não seja exactamente um elogio (dado que indica uma futura mulher que deseja assumir valores masculinos, impróprios para ela), é muito mais benigno que apodar de ‘mariquinhas’ um menino (que sofre assim um prematuro desprestígio ao ser considerado um fraco, como futuro homem). A língua portuguesa contém, além destes, muitos outros exemplos da desvalorização feminina. Eis alguns:

Aventureiro – homem que se arrisca, viajante, desbravador, temerário;
Aventureira – prostituta;
Homem da vida – pessoa letrada pela sabedoria adquirida ao longo da vida;
Mulher da vida – prostituta;
Homem de má vida – gatuno, malandro, trapaceiro, burlão;
Mulher de má vida – prostituta;
Menino da rua – menino pobre, que vive na rua;
Menina da rua – prostituta;
Puto – miúdo, garoto, catraio;
Puta – prostituta;
Touro – homem forte e possante;
Vaca – prostituta;
Vadio – meliante, arruaceiro, biltre, gandulo;
Vadia – prostituta;
Vagabundo – homem que não trabalha;
Vagabunda – prostituta.

Alguns provérbios populares portugueses
[4] são também bastante elucidativos:

A mulher e a mula, o pau as cura;
Ao Diabo e à mulher nunca falta que fazer;
Mulher que assobia, ou cabra ou vadia;
O melão e a mulher são maus de conhecer;
Só há duas mulheres boas no mundo: uma que já morreu, outra que ainda não nasceu.

No vernáculo português, os dois piores insultos que se podem dirigir a um homem são: ‘cabrão’ e ‘filho-da-puta’. Em ambos os casos, o homem é desvalorizado pelo suposto comportamento leviano das mulheres que lhe estão directamente relacionadas, quer seja a sua esposa quer seja a sua mãe. Isto é, apesar de serem as mulheres as verdadeiras insultadas, é o homem que vê o seu prestígio abalado ou por não ‘ter mão’ na sua esposa ou por o seu pai não a ter tido na sua mãe.

[1] Cf. Elsa Peralta, “Abordagens teóricas ao estudo da memória social: uma resenha crítica” in Arquivos da Memória – Antropologia, Escala e Memória n.º 2 (nova série), Centro de Estudos de Etnologia Portuguesa, 2007 [Consult. 15 Fev. 2009]. Disponível em http://www.ceep.fcsh.unl.pt/ArtPDF/02_Elsa_Peralta[1].pdf
[2] Cf. Mark Brumley, “Why God is Father and not Mother?” [Consult. 9 Jan 2009]. Disponível em http://www.ignatiusinsight.com/features2005/mbrumley_father1_nov05.asp
[3] Apud Ashley Montagu, The Natural Superiority of Women, New York, Macmillan, 1968, p. 3 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 379.
[4] Cf. Provérbios Populares Portugueses [Consult. 6 Maio 2009]. Disponível em http://proverbios.aborla.net/

domingo, 28 de fevereiro de 2010

A Bruxaria: origens da perseguição

A BRUXARIA[1] [2]

Entre os séculos XV e XVII, os processos de bruxaria condenam à fogueira sobretudo mulheres, que representam 80% das condenações. Os tratados de demonologia como o Malleus Maleficarum ou Martelo das Bruxas[3], escritos por teólogos, inquisidores ou magistrados a partir de confissões obtidas sob tortura, descrevem as práticas a que as bruxas se entregam, desde a cópula com Satanás para obterem os seus poderes maléficos, ao roubo de crianças recém-nascidas para serem transformadas em unguentos ou simplesmente comidas…
Mas como surgiu esta perseguição tão acirrada?

Ao contrário do que se convencionou quer nas crenças populares quer na tradição, a Igreja de Roma nunca estabeleceu uma autoridade tão completa como desejaria sobre os povos da Europa Ocidental. Decerto que a sua palavra era lei e podia chamar qualquer um, monarca ou camponês, à responsabilidade. Podia expandir-se localmente em dioceses e bispados, promover a compra de indulgências ou extorquir dízimos. Tinha o poder de punir quem contestasse as suas doutrinas ou a quem conviesse acusar disso, bem como de obrigar as comunidades a assistir à missa e a observar ritos, dias santos ou festivais. Porém, no que hoje em dia se denomina “batalha pelos corações e mentes” não teve um sucesso total e inequívoco. Se é verdade que muitos acreditavam fervorosamente na Virgem e nos santos, não é menos certo que muitos outros os encaravam como novas manifestações ou novas máscaras de princípios ou divindades bem mais antigos, sendo que muitos mais permaneceram, pelo menos em parte, indiferentemente pagãos.
Há que referir que as aldeias e cidades, assim como as abadias e mosteiros, subsistiam ‘cercadas’ por densa floresta, refúgio certo de todo o desconhecido, fonte de vários perigos (particularmente depois do pôr-do-sol), em suma um campo hostil que havia que apaziguar por meio de oferendas. Por outro lado, no Império Romano pré-cristianismo, havia sido reconhecido o deus Pã como regente do mundo natural; era uma figura com prerrogativas especiais em matéria de sexualidade e fertilidade, representado com orelhas, chifres, cauda e cascos de bode. Sob a autoridade da Igreja seria oficialmente demonizado e caracterizado como satânico. Não seria aliás a primeira vez que tal acontecia, pois habitualmente os deuses de qualquer religião tendem a tornar-se os demónios da religião que a suplanta.

Fig. 1 - Estátua de Pã encontrada num teatro de Pompeia.[4]

De qualquer das formas, ao mesmo tempo que passaram a frequentar a missa ao domingo e até assimilavam em certa medida os novos ritos, os camponeses europeus continuavam a prestar culto às antigas forças à espreita na floresta ao redor. Continuavam a esgueirar-se nas alturas certas do ano para os festivais pagãos de equinócios e solstícios em que os deuses da velha religião surgiam em destaque, embora disfarçados e cristianizados. Além disso, quase todas as comunidades tinham no seu seio uma velha reverenciada pela sua sabedoria, capacidade de ler a sorte ou o futuro, o conhecimento de ervas e meteorologia ou a habilidade de parteira; Muitas vezes confiavam mais nela – sobretudo as outras mulheres – que no pároco local. O padre podia representar poderes que talvez determinassem a sorte e o destino futuro das pessoas; no entanto, em variadíssimas questões esses poderes pareciam juízes majestáticos e intimidantes, severos e abstractos demais para serem incomodados. Ao invés, a típica velha da aldeia oferecia um canal para poderes mais imediatos e prontamente acessíveis, sendo ela, muito mais que ao padre, que as pessoas recorriam quando tinham questões relacionadas com clima e colheitas, a saúde do gado, a saúde pessoal, a sexualidade, a fertilidade e o parto.
Para se impor, a Igreja teve de demonizar e expulsar todas estas divindades e é neste contexto que surge o Malleus Maleficarum. Em detalhes legais, chocantes e frequentemente pornográficos, este tratado constitui um compêndio de psicopatologia sexual, um exuberante desvario de fantasia patológica. Concentra-se avidamente em cópulas diabólicas, relações com íncubos e súcubos, além de várias outras experiências eróticas e actividade ou inactividade sexual atribuíveis por imaginações abundantemente férteis às forças demoníacas. Como refere Montague Summers[5] o Martelo das Bruxas “estava no banco de todo o juiz, na mesa de todo o magistrado. Era a autoridade última, irrefutável, indiscutível. Era implicitamente aceite não só pela legislatura católica, mas também pela protestante.”[6]
Fig. 2 – Capa do tratado Malleus Maleficarum, manual medieval de caça às bruxas.[7]

Nos textos do Malleus, não há lugar para dúvidas: a mulher é encarada como fraca, pois “(…) deve assinalar-se também que ocorreu um defeito na formação da primeira mulher, pois que foi formada de uma costela encurvada (…), em direcção contrária à de um homem. E devido a este defeito é um animal imperfeito, sempre engana”[8], sendo “bonita de se olhar, contamina pelo contacto, e é mortal para se manter”, é “mentirosa por natureza”[9], pois que “toda a bruxaria vem do apetite carnal, que na mulher é insaciável.”[10] Se as mulheres bonitas eram especialmente suspeitas, o mesmo acontecia com as parteiras, com o seu íntimo conhecimento e experiência daquilo que para os Inquisidores eram insondáveis mistérios femininos. Acreditava-se habitualmente que um bebé nado-morto havia sido assassinado por uma parteira como oferenda ao demónio e era a sua bruxaria que produzia crianças deformadas, desfiguradas, doentias ou até mal comportadas.
“Se ela suspeita que a morte do seu filho foi causada por bruxaria, uma mãe normalmente não dirá nada às vizinhas, mas antes porá a roupa da criança a ferver numa caldeira de água esfaqueando-a uma e outra vez com um objecto contundente. Estas facadas serão sentidas pela bruxa sobre o seu próprio corpo e ela será obrigada a vir à casa pedir perdão. Outra alternativa será a mãe pegar na vassoura (o símbolo da bruxaria) e varrer a casa no sentido errado, ou seja, da porta para dentro, enquanto repete: «Assim como eu na minha casa ando a varrer, assim quem matou o meu menino aqui venha ter.»”[11]

Devido à confiança que inspirava noutras mulheres e à perda de autoridade para o padre, a parteira era um alvo ideal. De salientar que as mulheres assim acusadas – que, regra geral, são analfabetas e não saberiam sequer assinar as suas próprias confissões quanto mais escrever um diário pormenorizado das suas actividades – não têm qualquer ideia da sua condição nem da sua movimentada vida nocturna, que inclui participação em reuniões de bruxas, o sabat ou shabbat, para onde seguiam montadas nas suas vassouras ou nos seus lobos e se juntavam nas clareiras dos bosques praticando estranhos e misteriosos rituais (como a preparação dos unguentos resultantes da cozedura de crianças os quais se destinariam a voar ou a praticar feitiços).

Fig. 3 – A ‘Dama de Ferro’ aparelho de tortura usado para arrancar as confissões das bruxas.[12]

“As bruxas portuguesas assumem o corpo de um animal sempre que o desejem e são mais vezes referidos os patos, ratos, gansos, pombas e até formigas do que os mais comuns gatos e lebres. Os seus poderes duram entre a meia-noite e as duas da manhã e durante este tempo podem ser ouvidas a bater palmas, a rir ou a gritar de tristeza. Embora não seja dado nenhum nome em especial ao sábado, as bruxas encontram-se nos cruzamentos às terças e sextas e é por isso que há um preconceito popular contra aqueles dias expresso neste provérbio: «Às terças e sextas-feiras não cases a filha nem urdas a teia.»”[13]

Obviamente, todas as ‘confissões’ eram arrancadas através dos maiores vexames e tortura frequente; como referia Friedrich Spee von Lagenfeld (1591-1635), jesuíta alemão, na sua Cautio Criminalis[14]: “aquela que for condenada como bruxa tem de o ser”[15] afirmando ainda que quanto às acusações de que a alegada bruxa se defende “(…) ninguém lhe dá importância nem faz qualquer caso do que ela diz.”[16] Fundamentalmente, estipula-se que as bruxas têm cópula voluntária com o Demónio para dele obterem os seus poderes e os processos destinados a ‘apurar’ a verdade, mais não são que a justificação legal para os maiores abusos sobre as acusadas, pois não passam de “putas do Diabo” como Lutero as classificará.




[1] Cf. Arnelle Le Brás-Chopard – As Putas do Diabo, Círculo de Leitores, 2007.
[2] Cf. “Cruzada Contra a Bruxaria” in Michael Baigent, Richard Leigh – A Inquisição, Imago, 2001, pp. 116-137.
[3] Espécie de manual de diagnóstico para reconhecer bruxas, publicado em 1487, que se divide em três partes: a primeira ensinando aos juízes a reconhecer bruxas através dos seus múltiplos disfarces e atitudes; a segunda expondo todos os tipos de malefícios, classificando-os e explicando-os; finalmente uma terceira, regulamento todas as actividades para agir de forma ‘legal’ contra as bruxas, demonstrando como as inquirir e condenar (não necessariamente por esta ordem). Cf. “Malleus Maleficarum” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1 Mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Malleus_Maleficarum
[4] Imagem extraída de “Pã (mitologia)” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 1 Mar. 2009]. Disponível em http://pt.wikipedia.org/wiki/Lup%C3%A9rcio_(mitologia)
[5] Augustus Montague Summers (1880-1948) foi um excêntrico autor inglês e clérigo. É conhecido principalmente pela sua tradução inglesa, em 1928, do manual medieval de caça às bruxas, o Malleus Maleficarum, bem como por vários estudos sobre bruxas, vampiros e lobisomens, nos quais afirmava acreditar. Cf. “Augustus Montague Summers” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Montague_Summers
[6] Cf. Michael Baigent, Richard Leigh op. cit. p. 125
[7] Imagem extraída de Spectrum Gothic [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/b9e35o
[8] Malleus Maleficarum – Español – Parte II, p. 50 [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://www.spectrumgothic.com.br/ocultismo/livros/malleus.htm (download em espanhol).
[9] Idem, p. 53
[10] Apud Alcuin Blamires, (edit.), Women Defamed and Women Defended: An Anthology of Medieval Texts, Oxford (GB), Clarendon Press, 1992, p. 47 apud Robert S. McElvaine, op. cit., p. 54
[11] Rodney Gallop – Portugal, a Book of Folk-Ways, Cambridge, Cambridge University Press, 1936, pp.55-56 apud Ana Vicente – As Mulheres Portuguesas Vistas por Viajantes Estrangeiros, Lisboa, Gótica, 2001, p. 240

[12] Imagem extraída de Spectrum Gothic [Consult. 2 Mar. 2009]. Disponível em http://tinyurl.com/b9e35o
[13] Vide supra n. 11
[14]Cautio Criminalis sea des Processibus Contra Sagas Liber. Ad Magistratus Germania hoc tempore necesarius tum autem Consiliariis, & Confessariis Principum, Inquisitoribus, Judicibus, Advocariis, Confessariisreorum, Concionatoribus, caeteristiq; lectu utilissimus Avctore Incerto Theologo Orthod” ou “Precaução para os Promotores nos processos contra bruxas, abertura necessária hoje aos magistrados da Alemanha assim como aos conselheiros e aos confessores dos príncipes, aos inquisidores, aos juízes, aos advogados, aos confessores dos acusados, aos pregadores e a muitos outros” (1631), obra em que Spee condena vigorosamente a tortura como meio de obter confissões. Cf. “Friedrich von Spee” in Wikipédia, The Free Encyclopedia [Consult. 6 Mar. 2009]. Disponível em http://en.wikipedia.org/wiki/Friedrich_von_Spee, em http://la.wikipedia.org/wiki/Fridericus_Spee e em http://pt.wikipedia.org/wiki/Cautio_Criminalis
[15] Arnelle Le Bras-Chopard, op. cit., p. 13.
[16] Idem, p. 17

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 5 de 5

Conclusão
Naturalmente, esta poderá considerar-se uma visão demasiado pessimista ou demasiado fantasiosa do futuro. Porém, colocando-a contra a luz da actualidade, torna-se bastante plausível. Alguns exemplos podem estabelecer essa relação:

I. O presidente George W. Bush tomou unilateralmente a decisão de abandonar o Protocolo de Quioto – uma tímida iniciativa para diminuir a emissão de gases poluentes pelos países industrializados, da qual cerca de 25% é da exclusiva responsabilidade dos EUA (informação recolhida dos media) – por considerar que tal acordo era prejudicial à indústria americana;

II. O abate de floresta virgem é cada vez mais intenso, pela incessante procura de madeiras exóticas;

III. A invasão do Iraque tendo em vista – apesar de todos os discursos humanitários acerca da implementação dos Direitos Humanos – a apropriação e posterior divisão entre si dos recursos petrolíferos do país – de que estarão apenas explorados cerca de 10% (informação recolhida dos media) – entre as potências ocidentais;

IV. A pesca excessiva que impossibilita a reposição das populações piscícolas – estimando-se que o bacalhau, por exemplo, que sofreu uma redução de 70% no Mar do Norte, chegue à extinção dentro de quinze anos a manter-se o ritmo actual de pesca (informação recolhida dos media) –, motivada pela crescente demanda de alimento pelas populações humanas em aumento constante.

Os exemplos abundam e poderiam multiplicar-se.
Por tudo isto, a realidade ficcionada que foi anteriormente descrita tem grandes possibilidades de poder vir a tornar-se uma realidade concreta, a menos que se encontrem formas de regular a globalização que rege as sociedades ocidentais e que, não há que ter ilusões, veio para ficar, considerando as avassaladoras vantagens do ponto de vista económico. De evitar que essa globalização não se venha a traduzir numa uniformização da sociedade, nivelada pela mediocridade ou pela superficialidade, num mundo superpovoado que, pela busca incessante de recursos, tornará o planeta que lhe serve de guarida num deserto estéril.

Cá estaremos para ver…


Bibliografia

FUKUYAMA, Francis, O Fim da História e o Último Homem, Lisboa, Gradiva, s.d.

HUNTINGTON, Samuel, O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial, Lisboa, Gradiva, 2001, 2ª edição.

HUXLEY, Aldous, Admirável Mundo Novo, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2001.

HUXLEY, Aldous, Regresso ao Admirável Mundo Novo, Lisboa, Ed. Livros do Brasil, 2001.

ORWELL, George, 1984, Ana Luísa Faria (trad.), Porto, Público Comunicação Social, S.A., 2002, colec. Mil Folhas, n. 25.

Osborne, Richard, Homem Demolidor, I. Mafra, H. César, M. J. Bento, (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1993.

POHL, Frederik, KORNBLUTH, C. M., Os Mercadores do Espaço, João Miguel Carvalho (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1952 (1ª edição).

POHL, Frederik, KORNBLUTH, C. M., A Guerra dos Mercadores, Olga Fonseca (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984 (1ª edição).

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 4 de 5

As sociedades superpovoadas
Contudo, talvez não seja preciso haver uma guerra a nível global. Durante o séc. XIX os sucessivos progressos da tecnologia foram acompanhados de correspondência no campo organizativo. À maquinaria complicada tiveram de ser opostas complicadas disposições sociais, destinadas a funcionarem tão suave e eficazmente como os novos meios de produção. Por outro lado, as indústrias ao expandirem-se exigiram uma proporção cada vez maior de trabalhadores, encorajando indirectamente a natalidade, até que, presentemente, dado o magnífico sucesso da medicina em prolongar a vida humana e em aguentá-la quando esta ainda é incipiente, a superpopulação é cada vez mais uma realidade palpável.
A quantidade rapidamente crescente da população pesa cada vez mais sobre os recursos naturais. Cerca de três mil milhões de seres humanos exigem actualmente dos seus governos o provimento de boas condições de vida. A pressão do crescimento demográfico e dos progressos tecnológicos levarão a um incremento dos processos organizativos, que terá reflexo na legislação que rege as comunidades. Certamente que as Constituições e as leis de defesa do cidadão não serão abolidas, mas serão subordinadas às novas realidades tendo em vista o funcionamento regular das instituições de cada país.
Quando a vida económica de uma nação se torna periclitante, compete ao governo encontrar soluções para enfrentar essa situação crítica, impondo restrições aos seus governados; ora isto traz como consequência um clima de intranquilidade política ou mesmo rebelião declarada, ao qual as autoridades respondem com medidas visando salvaguardar a ordem pública e a sua própria existência, concentrando cada vez mais poder e, finalmente, ainda que não o tenham procurado, tomam-lhe o gosto. São as Constituições democráticas que impedem que demasiado poder se concentre em poucas mãos, mas em qualquer sociedade em que a população começou a exercer intensa pressão sobre os recursos disponíveis, surgem inevitavelmente tentações de governo totalitário.
Assim, a superpopulação conduz à insegurança económica e à intranquilidade social que, por sua vez, levam a um maior controlo governativo e a uma maior concentração do seu poder. Quando os sistemas democráticos são fracos, a tendência é para se instalar um governo ditatorial, conforme tem sido abundantemente demonstrado pela História. No entanto, observando os países ocidentais em que democracia e liberdade constituem património colectivo e que, altamente industrializados, são obrigados a sustentar uma população muito maior do que a que seria possível a partir dos recursos naturais disponíveis, a viragem para um regime totalitário com a consequente centralização económica no Estado ou numa oligarquia, iria quebrar as actuais relações de produção que, mal ou bem, têm vindo a servir de suporte a um bem-estar de modo geral superior ao do resto do globo. Além disso, para a sua própria manutenção, o totalitarismo necessita de subjugar as populações mantendo-as num estado de tensão permanente, o qual, por seu turno, não é favorável ao desenvolvimento económico, já que desvia o esforço das pessoas concentrando-o na sobrevivência individual ao invés de o concentrar na busca de melhores condições de vida.
Deste modo, o corolário lógico da vivência que nos alvores do séc. XXI é a existente no mundo ocidental e que, inevitavelmente, tem tendência a propagar-se a nível global por constituir sinónimo de invejável sucesso – ainda que esse sucesso tenha sido conseguido à custa dos países menos desenvolvidos, fornecedores de matérias-primas e mão-de-obra barata –, não poderá ser uma qualquer forma de totalitarismo que iria pôr em causa uma globalização económica paulatinamente construída desde o final da guerra-fria.Tem maiores probabilidades de ser tal como foi descrito no capítulo anterior: um capitalismo desenfreado que exauriu por completo os recursos do planeta Terra e que vê os cidadãos apenas e só como consumidores compulsivos que desenvolvem os maiores esforços para tudo adquirirem. Em que o desenvolvimento industrial deixou de ter como objectivo o incremento do bem-estar das populações para passar a perseguir a criação de novos produtos mais vendáveis que os anteriores, subordinado às directrizes das agências de publicidade tornadas todo-poderosas. Em que os governos têm apenas uma função decorativa, subordinados aos ditames dos presidentes das companhias publicitárias que almejam antes de tudo o aumento dos seus lucros.

domingo, 8 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 3 de 5

Uniformização da sociedade
Para se atingir este estádio em que a população sente a necessidade e é compelida a consumir, há que modificar o seu comportamento desgarrado e torná-lo uniforme e previsível. A solução não é nova, tendo já sido testada – e por algum tempo conseguida – pelos regimes totalitários do séc. XX: nazismo e estalinismo. Em ambos os casos, procedeu-se a um redireccionamento da sociedade, alterando os seus padrões comportamentais através da repressão e, sobretudo, da propaganda.
Como George Orwell demonstrou em 1984 a propaganda é o método mais eficaz de influenciar a opinião pública, desde que se controlem os meios emissores. E a propaganda serve os mais diversos fins, desde a publicidade comercial comummente aceite até à mobilização de massas com objectivos políticos.
Neste contexto surge como paradigmática a história do Instituto para a Análise Propagandística (Institute for Propaganda Analysis), criado em 1937 nos Estados Unidos, numa altura em que a propaganda nazi atingia o seu auge (Aldous Huxley, Regresso ao Admirável Mundo Novo). Tinha por missão efectuar uma análise da propaganda não racional com preparação de vários textos para estudantes liceais e universitários. Veio então a II Guerra Mundial, uma guerra total em todas as frentes, desde a frente de combate até ao conflito surdo, mas não menos determinante, pela posse de informações estratégicas e pelo ludibriar dos esforços inimigos na sua obtenção, além da acção psicológica levada a efeito quer para levantar o moral das próprias populações quer para desmoralizar as populações inimigas. Assim sendo, analisar a propaganda emitida tornara-se contraproducente em relação ao esforço de guerra e o Instituto seria encerrado em 1941.
Contudo, ainda antes do começo da guerra, já muitos sectores punham profundas objecções à sua actividade. Muitos educadores desaprovavam que se ensinasse a analisar a propaganda, por considerarem que isso tornaria os educandos indevidamente cínicos. As autoridades militares também não viam com bons olhos a análise propagandística, por recearem que os soldados começassem a examinar melhor as ordens dos sargentos instrutores. A grande maioria dos religiosos também era contra, considerando que tendia a enfraquecer a fé e a afastar as pessoas dos cultos. Os publicitários, por seu lado, opunham-se veementemente a que se analisasse a propaganda pois podia minar a fidelidade à marca e a reduzir as vendas.
Não serão de surpreender estas reacções “alérgicas” quando se falava de analisar a propaganda. Um exame demasiado pormenorizado, levado a cabo pelas pessoas, daquilo que é dito pelos seus líderes, sejam políticos, militares ou religiosos, poderia tornar-se extremamente subversivo. A ordem social depende, para a sua manutenção, da aceitação sem demasiadas questões embaraçosas da propaganda posta a circular pelas autoridades, embora seja de evitar a postura acrítica perante as informações veiculadas.No entanto, faltará ainda o catalisador que terá a função de impelir a profundas modificações na ordem social vigente de modo a torná-la uniforme e previsível. Tanto em 1984 de George Orwell como em Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, como em muitas outras obras que descrevem uma sociedade futura[1], o catalisador é uma guerra ou, melhor dizendo, uma última Grande Guerra, imensamente mais aniquiladora que todas as anteriores, de tal forma que produziu um profundo impacto na mente das populações, criando terreno fértil para a aceitação de uma nova ordem social.
[1] Cf. Richard Osborne, Homem Demolidor, Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1993. Adaptação do argumento de filme com o mesmo título, protagonizado por Sylvester Stallone e Wesley Snipes, em que se descreve um mundo após uma guerra global com elevadíssimos custos em vidas humanas e na destruição da propriedade e das instituições, do qual emerge uma sociedade absolutamente pacífica em que as pessoas ficam simplesmente nauseadas com a mais leve sugestão de violência.

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Evolução do mundo contemporâneo - parte 2 de 5

Evolução para um capitalismo selvagem[1]

Este “admirável mundo novo”, para citar o título da famosa obra de Aldous Huxley, será tudo menos admirável quando comparado ao actual. O capitalismo selvagem, de que tanto se fala actualmente como tendência que se quer evitável a todo o custo, tem aqui plena realização. As agências de publicidade dominam a sociedade a todos os níveis, determinando o comportamento humano. O planeta Terra já pouco pode oferecer de tão exaurido que foi. Impera a indiferença em relação a um provável colapso futuro devido à sobreexploração, existindo a convicção cega de que, caso necessário, a ciência poderá criar novos “recursos naturais” para substituir os que entretanto se forem esgotando. Desencorajando-se a leitura e proporcionando-se lares de ambiente deprimente, as pessoas são induzidas a consumir freneticamente para aliviar o tédio que sentem.

A água corrente nas torneiras é salgada, já que a escassez de água doce obriga a preços só compatíveis com os quadros superiores das grandes companhias de publicidade, os quais constituem os privilegiados – com um número da segurança social baixo, da ordem das dezenas de milhão, em relação à restante população, da ordem dos triliões – de uma sociedade com um excesso populacional dramático. Este excesso populacional levou a que o conceito de habitação se tenha tornado obsoleto: a multidão de empregados nos escritórios citadinos pernoita nos degraus das escadas dos arranha-céus, alugados em cada noite; o reduzido número de habitações que ainda é construído – e que constitui o sonho de uma vida para o comum dos cidadãos – não passa de uma fina estrutura de plástico pré-fabricado. Nos dormitórios existentes as camas nunca chegam a arrefecer, pois há um esquema rotativo de dormidas em que um utente é acordado pelo outro quando chega a vez de um de ocupar o leito e de outro o ceder.

Todos os produtos consumíveis pelo ser humano são conhecidos apenas pela sua designação comercial, contendo um alcalóide simples que produz habituação e uma necessidade específica de consumir outro produto da mesma marca. É assim que a uma oferta de cigarros surge a necessidade de fumar aquela marca específica, que, por sua vez, gera a necessidade de comer um chocolate daquela marca específica, que, por seu turno, faz pensar em consumir uma bebida daquela marca específica, originando o desejo de fumar novamente um cigarro daquela marca específica, repetindo o ciclo duas ou três vezes antes de chegar à saciedade. Além do alcalóide, os anúncios publicitários – tridimensionais, com projecção de visão-sabor-cheiro-audição-sensação directamente nos órgãos sensoriais humanos – cumprem também a função de fidelizar irrevogavelmente o consumidor às marcas, a ponto de este ao pensar em fumar um cigarro, comer um chocolate ou tomar uma bebida, repetir de forma reflexa a mensagem publicitária associada ao produto que está a consumir. Ingerir comida natural, como um assado nos moldes tradicionais, tornou-se um acto repugnante.

Continuam a existir trabalhadores não especializados que se encarregam das tarefas mais árduas, com contratos de trabalho vitalícios, na prática, já que embora tenham uma duração fixa, o trabalhador não pode abandonar a companhia sem pagar as dívidas que contrair; acrescente-se que todo o sistema está montado para que seja impossível não contrair dívidas, pois os produtos são vendidos a preços exorbitantes em relação à quantidade dos mesmos que é dispensada – escassa, que gera a necessidade de obtenção de nova dose – e ao salário que se recebe. De cada vez que se adquire um produto das inúmeras máquinas de venda automática, esse produto leva inexoravelmente ao consumo de outro, que, por sua vez, leva ao consumo de um outro e, como o crédito é extremamente facilitado, a dívida cresce de forma exponencial.

Todos os produtos são fabricados a partir de compostos sintéticos de substituição de elementos naturais agora esgotados na maioria do planeta. Alguns deles viciam instantaneamente quer pelos alcalóides que contêm quer mediante a utilização de apelos publicitários em forma de projecções subliminares e subsónicas, sendo extremamente difícil, senão mesmo impossível, a revogação do hábito. A religião tornou-se acima de tudo um negócio extremamente lucrativo, dado o pequeno investimento necessário – pois fideliza o consumidor sem necessidade de recurso a sofisticadas tecnologias para vender o produto – e o comparativamente elevadíssimo lucro – resultante da devoção conseguida, que se traduz na compra obsessiva de todos os artigos com ela relacionados, e da consequente publicidade, a custo zero, do produto pelo consumidor.

As fábricas deixaram de ter filtros nas chaminés para retenção do enxofre e dos gases industriais, porque deixou de interessar proteger a saúde dos cidadãos uma vez que a morte era muito mais lucrativa: tornou-se mais barato pagar seguros de vida que pensões; os seguros de doença movimentam muito dinheiro, pois quem passou cinquenta anos da sua vida a respirar os fumos tóxicos sabe que irá estar doente grande parte do tempo e se morrer em pouco tempo, o lucro das seguradoras é quase total; as agências funerárias também levam o seu quinhão, obtendo elevados proventos na disposição dos mortos; e, por fim, quando o consumidor ultrapassa a idade de poder trabalhar, dispõe de muito pouco dinheiro para adquirir bens de consumo, pelo que deixa de ter utilidade.

Embora continuem a existir potências como os EUA, o Governo deixou de ser uma entidade com vontade própria, gerindo o país com maior ou menor sucesso, para se tornar o órgão que dá forma de lei aos interesses das grandes agências publicitárias, não mais que um banco central de influências. O Congresso é dominado indirectamente pelas companhias de publicidade, através dos congressistas que constam das respectivas folhas de pagamento e o Presidente, destronado do lugar de vértice da nação, tem de solicitar respeitosamente uma abertura nas preenchidas agendas dos delegados publicitários ao Congresso. A política, como nunca o fora até então, tornou-se um declarado campo de batalha das agências de publicidade, remetendo para plano secundário os candidatos – ensinados, vestidos, maquilhados, ensaiados e dirigidos – que mais não fazem que debitar apelos publicitários em formato de slogans políticos vazios de conteúdo. Também mais do que nunca os aspirantes a candidatos não faltavam, pois os políticos ganhavam quase tanto como um publicitário principiante, em termos de salário base, a que acresciam diversas avenças, abonos, consultorias e afins ao longo da carreira, fazendo ascender os proventos ao nível de um executivo publicitário médio; para todos os efeitos, era um importante salto da inferior condição social de consumidor para outra em que se detinham alguns privilégios.

A política externa americana, tal como a dos outros países desenvolvidos – em termos mercantis –, pautava-se pela mais ostensiva ingerência nos destinos dos escassos e ínfimos recantos da Terra, tradicionalmente mais atrasados, que ainda não tivessem optado por abraçar os benefícios da economia de mercado, isto é, que ainda não se tivessem constituído como mais um grupo de consumidores obedientes. Para isso, recorre-se, naturalmente, ao Exército, mas os métodos empregues diferem substancialmente; as metralhadoras e os canhões foram substituídos por projecções de visão-sabor-cheiro-audição-sensação, simplesmente químicas, subsónicas ou estridentes, mas sempre subliminares, dirigidas directamente aos órgãos sensoriais onde penetram à força e os soldados foram substituídos por técnicos de publicidade e abastecimento. Os resultados são tão satisfatórios que, logo depois de terminarem as campanhas militares, as populações visadas acorrem em massa aos pontos de abastecimento desejando adquirir e consumir produtos de que, horas antes, nunca tinham experimentado qualquer necessidade, lutando mesmo entre si para os conseguirem; líderes surgem nos noticiários televisivos fumando dois cigarros, bebendo uma chávena de café e entornando metade no fato novinho em folha, tudo das principais marcas comercializadas e também tudo no espaço de vinte segundos, agradecendo profusamente terem sido libertados da “escravidão” em que viviam antes.

É este o mundo em que o capitalismo selvagem impera. Todavia, poderá surgir a dúvida sobre se será realmente esta uma evolução de alguma forma inevitável. É possível que se possa evoluir para um sistema totalitário nos moldes tradicionais, em que o Estado ou uma oligarquia concentram em si o comando exclusivo relativamente a todos os aspectos da vida do país; é possível mas não provável, pois a História tem demonstrado que os sistemas totalitários são incompatíveis com o desenvolvimento económico. Não terá sido por acaso que os regimes de ditadura militar da América Latina soçobraram ou que a “cortina de ferro” caiu; estes regimes chegaram a um ponto da sua existência em que não conseguiam dar resposta a uma movimentação de capitais muito mais intensa (Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem).


[1] Cf. Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, Os Mercadores do Espaço, Mem-Martins, João Miguel Carvalho (trad.), Publ. Europa-América, 1952 (1ª edição); Frederik Pohl, C. M. Kornbluth, A Guerra dos Mercadores, Olga Fonseca (trad.), Mem-Martins, Publ. Europa-América, 1984 (1ª edição).